Sem açúcar

Conto publicado no Correio das Artes – Edição de outubro de 2019, nº 08

 

Dirigiu furiosa até o supermercado depois de perder a manhã inteira de folga na oficina mecânica e perceber que o problema não fora resolvido. O tempo já era tão curto, as tarefas tantas e lá se foi uma manhã todinha para nada. E aquela pessoa do trabalho que ainda ligou cheia de razão e grosseria? Ao menos foi uma distração para não bater no mecânico de cara deslavada, que apareceu com a peça quebrada na mão.

Ainda tinha o supermercado. A banana estava cara e a última bandeja de ovos na promoção estava com um ovo quebrado. Levou mesmo assim. Suspirou encostada no carrinho, como quem entrega os pontos. Até que lembrou que tinha o café com ele dali a pouco. Tudo iria se dissipar e valer a pena. Até um sorriso no canto da boca a lembrança trouxe. Mudou de sessão empurrando o carrinho pelos corredores. Tentando adivinhar o gosto dele, escolheu o bolo mais fofinho, a torrada mais fresca, o pão crocante, o pão doce e o pão de mel, porque açúcar era importante. Depois de tantos meses de conversas e trocas de olhares, quem sabe aquele não era o dia. Mesmo que não fosse, ao menos seria uma tarde fora da rotina, falando de assuntos amenos, mais um passo de aproximação.

Voltou para casa apressada, atrasada. Estava tudo uma bagunça e já sabia como queria deixar o lar doce lar para recebê-lo e causar uma boa primeira impressão. Guardou as compras, lavou a louça, sacudiu a manta do sofá, ajeitou os brinquedos, varreu o chão. Nem almoçou para não perder tempo. A visita chegaria dali a uma hora.

Tomou banho, passou hidrante no corpo, se perfumou e demorou para escolher a roupa. Tinha que ser casual, sem parecer que se arrumou demais, mas também um pouco sexy, sem exagero, para não parecer que ela queria o que queria. Escolheu um vestido confortável, mas levemente curto.

Deixou para fazer o café quando ele chegasse, fresquinho, mas o queijo assaria minutos antes para garantir o cheiro de comida no fogão. O infeliz do vizinho achou de tocar fogo em alguma coisa no quintal justo depois que a casa estava perfumada. Correu, fechou todas as janelas e prendeu o cabelo cuidadosamente. Passada a fumaceira, borrifou o aromatizador mais uma vez e esperou com a mesa posta. Ligou a TV para se distrair depois de conferir o canto de cada coisa pela milésima vez.

Estava agitada pela correria, mas o cansaço fez sentir o alívio da coluna se encostando no sofá. Mal conseguia refazer mentalmente o trajeto do dia. Mas ele ia chegar, seria a recompensa se ela conseguisse relaxar e aproveitar.

Passados alguns minutos, começou a checar as mensagens no celular. É, ele estava atrasado. Trabalho, avisou por mensagem. Ela que correu tanto, xingou tanta gente, agora estava esperando sentada, rezando para o vizinho não botar fogo em mais nada.

Uma hora passou, e nada. Duas horas, e nada. Que droga! Ela podia ter almoçado, ter corrido menos, ter evitado pensar em matar o mecânico. Imaginou que ele não viria, como da outra vez, que teve que se desfazer de tanta comida e frustração.

Passado quase o tempo limite que a paciência seria capaz de suportar, enfim ele avisou que estava a caminho. Era fim de tarde, quase noite. Acendeu uma vela, incenso (que nem estavam nos planos), botou a música para tocar e fez de conta que nenhum esforço e energia haviam sido dedicados o dia inteiro para recebê-lo bem. Respirou fundo. Arrumou o vestido e o cabelo depois que o interfone tocou.

Abriu a porta sorridente.

Ele a abraçou justificando o atraso.

Entrou, olhou em volta, mas não disse nada sobre a casa.

Coou o café na hora, o cheiro ficou no ar, mas ele pareceu não notar.

Sentou na mesa, posta, farta, mas nada comentou sobre a torrada ou o pão.

Conversou sobre trabalho apenas, por duas horas.

Disse que tinha que ir.

Agradeceu, e foi. A louça ficou pra lavar.

Deixe um comentário